Aos poucos os raios de sol que espreitavam pelas portadas entreabertas foram enchendo o quarto de luz. Acordou e manteve-se aconchegado entre as almofadas, tentando abrir os olhos embora a vontade fosse de mantê-los fechados.
Lembrava-se agora dos momentos que vivera na noite passada. O toque, o cheiro, os gemidos prazenteiros que se originavam naquela cama, os beijos doces, lábios que se tocaram. Tudo acabou antes da meia-noite do dia anterior, quando o motivo de tão agradáveis momentos abandonou a cena.
Mantinha-se ali, deitado entre as almofadas, imaginando que àquela hora ele estaria a acordar, talvez abraçado à mulher com quem casara.
Este blogue tem conteúdo adulto. Quem quiser continuar é risco próprio; quem não quiser ler as parvoíces que aqui estão patentes, só tem uma solução.
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terça-feira, 21 de junho de 2016
sexta-feira, 11 de julho de 2014
Mensagem...
Não há sinal de satélite que me permita telefonar. Nem sequer existe electricidade na bateria do telemóvel e muito menos uma tomada onde possa ligar o carregador. Aqui na ilha tudo é mínimo, por isso espero que a ondulação tenha a força e a orientação correcta para te entregar esta mensagem, que vai dentro de uma garrafa, a última forma que encontrei para tentar contacto.
Quando rumei para esta ilha não pensava o quão só me iria um dia sentir. Sempre pensei ser suficiente para mim próprio e só agora entendo que estava errado. Deve ser porém tarde demais, pois já deves ter encontrado uma nova aventura, sinal que esta mensagem chegou tarde.
Pensando bem, qualquer outra aventura é melhor que aquela do qual acabei por fugir. Não te mereço. Nem sequer mereço qualquer sinal de carinho ou piedade pelas minhas escolhas erradas. Sempre te disse que eu não era a metade da tesoura que completa a tua outra metade. Mas mesmo assim quiseste apostar e eu não soube dar o real valor desse acto.
Aqui estou, tão sozinho como o meu subconsciente sempre soube que seria o meu destino final, perdido numa ilha, no meio deste oceâno, que nem sequer aparece nas cartas náuticas conhecidas. É o meu prémio e talvez a minha penitência.
Eternamente...
segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014
Conta Encerrada - parte 2
Se os primeiros dias tinham sido algo enfadonhos, agora quase não tinha tempo nem para coçar o nariz. O gabinete, situado no quinto andar do edifício bancário, tinha uma boa vista. Se se chegasse um pouco mais para a direita dava para ver um pouco do cais do ferry, do outro lado eram apenas prédios que faziam sombra ao seu. Menos mal, assim o calor não era tão intenso, pois gostava pouco de manter o ar condicionado ligado.
Já não sabia a cor do tampo da secretária, tão coberta de papéis que estava. Os processos amontoavam-se por toda a superfície e pelas prateleiras e móveis restantes. Atender um cliente era quase uma aventura, obrigando-o a mover a papelada de um lado para o outro, tentando no entanto não misturar as folhas, em especial aquelas que não estavam agrafadas e que de quando em vez caiam no meio das outras.
O crédito mal parado era o seu maior problema, especialmente quando tinha que aturar a choradeira de senhoras que se diziam indefesas, que se faziam acompanhar muitas vezes pelos ranhosos dos filhos, que agarravam em tudo o que estava à mão para fazerem aviões e outras traquinices. Afonso tinha que manter o seu semblante de acordo com cada uma das situações, era como se fosse um actor, apesar de não ter tido essa disciplina na licenciatura que tinha no currículo. E os pequenos empresários mentirosos não se deixavam ficar atrás, inventando mil e uma desculpas para que os prazos fossem alargados ou que os juros fossem renegociados.
A crise que se instalara no passado estava-lhe sempre na mente. Se por um lado sabia que eram maioritariamente desculpas esfarrapadas que lhe eram transmitidas naquela sala, haviam porém histórias verídicas que o faziam pensar profundamente. Gostava de poder ajudar quem lutava e não tinha sorte, mas essa não era a sua tarefa, era sim obter os fundos necessários para a boa saúde financeira do seu patrão.
À hora de almoço descia ao piso térreo onde funcionava um restaurante de fast-food. Escolhia normalmente o hambúrguer pois era a comida que lhe parecia mais saudável, mais não seja por ser acompanhada de alguma verdura. Bebia água normalmente pois o seu estômago era impressionantemente esquisito quanto a outras bebidas, especialmente as gaseificadas, já que as alcoólicas estavam reservadas unicamente aos seus tempos livres.
Almoçava sozinho, não que se desse mal com as colegas, simplesmente porque já lhe bastava ouvir falar dos problemazitos caseiros delas à hora do café. Estava farto de ouvir falar de detergentes, sapatos, malas de couro, maridos, filhos e de tantos outros assuntos que só elas gostam de falar. Sentia-se porém observado por vezes, enquanto trincava a sandes de carne lambuzada com molho de tomate. Seria a miúda da caixa que usava horríveis meias de riscas? Talvez aquele rapaz loiro que servia as bebidas e que de quando em vez lhe piscava o olho? Olhava em todas as direcções discretamente e não conseguia identificar quem poderia ser. Talvez fosse só impressão ou uma forma de tentar que a hora de almoço fosse menos rotineira.
Limpou os lábios, levantou-se com o tabuleiro e despejou-o no lixo. Acenou ao rapaz das bebidas que esboçou um sorriso de orelha a orelha e voltou ao trabalho. Os papéis esperavam.
Já não sabia a cor do tampo da secretária, tão coberta de papéis que estava. Os processos amontoavam-se por toda a superfície e pelas prateleiras e móveis restantes. Atender um cliente era quase uma aventura, obrigando-o a mover a papelada de um lado para o outro, tentando no entanto não misturar as folhas, em especial aquelas que não estavam agrafadas e que de quando em vez caiam no meio das outras.
O crédito mal parado era o seu maior problema, especialmente quando tinha que aturar a choradeira de senhoras que se diziam indefesas, que se faziam acompanhar muitas vezes pelos ranhosos dos filhos, que agarravam em tudo o que estava à mão para fazerem aviões e outras traquinices. Afonso tinha que manter o seu semblante de acordo com cada uma das situações, era como se fosse um actor, apesar de não ter tido essa disciplina na licenciatura que tinha no currículo. E os pequenos empresários mentirosos não se deixavam ficar atrás, inventando mil e uma desculpas para que os prazos fossem alargados ou que os juros fossem renegociados.
A crise que se instalara no passado estava-lhe sempre na mente. Se por um lado sabia que eram maioritariamente desculpas esfarrapadas que lhe eram transmitidas naquela sala, haviam porém histórias verídicas que o faziam pensar profundamente. Gostava de poder ajudar quem lutava e não tinha sorte, mas essa não era a sua tarefa, era sim obter os fundos necessários para a boa saúde financeira do seu patrão.
À hora de almoço descia ao piso térreo onde funcionava um restaurante de fast-food. Escolhia normalmente o hambúrguer pois era a comida que lhe parecia mais saudável, mais não seja por ser acompanhada de alguma verdura. Bebia água normalmente pois o seu estômago era impressionantemente esquisito quanto a outras bebidas, especialmente as gaseificadas, já que as alcoólicas estavam reservadas unicamente aos seus tempos livres.
Almoçava sozinho, não que se desse mal com as colegas, simplesmente porque já lhe bastava ouvir falar dos problemazitos caseiros delas à hora do café. Estava farto de ouvir falar de detergentes, sapatos, malas de couro, maridos, filhos e de tantos outros assuntos que só elas gostam de falar. Sentia-se porém observado por vezes, enquanto trincava a sandes de carne lambuzada com molho de tomate. Seria a miúda da caixa que usava horríveis meias de riscas? Talvez aquele rapaz loiro que servia as bebidas e que de quando em vez lhe piscava o olho? Olhava em todas as direcções discretamente e não conseguia identificar quem poderia ser. Talvez fosse só impressão ou uma forma de tentar que a hora de almoço fosse menos rotineira.
Limpou os lábios, levantou-se com o tabuleiro e despejou-o no lixo. Acenou ao rapaz das bebidas que esboçou um sorriso de orelha a orelha e voltou ao trabalho. Os papéis esperavam.
terça-feira, 4 de fevereiro de 2014
Teria tomado uma má decisão? - pensava Afonso algumas horas após ter agido, possivelmente sem ter pesado as reais consequências que tal façanha acarretava. O dia começara com a normalidade do costume, solarengo, notando-se apenas uma pequena brisa que fazia deslocar suavemente as pontas dos velhos pinheiros que povoavam o lado de fora da sua janela.
Levantou-se, cruzou o quarto e ainda de olhos meio abertos foi até à casa de banho, onde verteu as primeiras águas do dia e se colocou diante do espelho, para uma vez mais olhar para o estúpido que todos os dias, sem excepção, o mirava do outro lado daquela fronteira. Lavou os olhos ignorando o seu próprio reflexo, como querendo esquecer-se que o tempo passava e a jovialidade desaparecia aos poucos.
Trocou os habituais jeans e a camisola por uma vestimenta mais formal, afinal teria que se apresentar o melhor possível para aquele que poderia ser o emprego da sua vida. Apertou o nó da gravata, que pensava já não saber fazer com tal perfeição e compôs o colarinho da camisa tão bem engomada pelas maravilhosas mãos da sua vizinha da frente, sua melhor amiga naquela terra desconhecida.
Quase estragou o momento não fora a sorte do pingo de geleia que inundava a fatia de pão integral ter caído alguns centímetros além do tecido das suas calças vincadas. Sentia que estava atrasado apesar de se ter levantado muito antes do que era normal, porém sair de casa sem comer estava completamente fora de questão e não seria naquele dia que mudaria de hábito.
Olhou em volta, pegou a carteira, colocou a mão no bolso direito para procurar o lenço, pegou as chaves, saiu de casa, sem antes fazer o sinal da cruz na sua cara, como que pedindo uma bênção especial para aquele dia. Assim que passou o velho átrio do prédio sentiu que tinha chegado à fronteira da civilização. A porta da rua era o último limite que separava o passado daquele futuro que se aproximava e que poderia ser brilhante ou não.
Foi o barulho da cidade que o acordou totalmente. Aquele lufa-lufa infernal obrigava-o a ficar atento, como se a cada passo o perigo ou apenas o desconhecido pudesse ser um ataque contra si próprio. Sentia-se porém à vontade naquele espaço, como se nunca tivesse estado longe dele, como se a ausência fosse apenas mais uma situação normal da sua vida.
Optara por deslocar-se de táxi até ao centro da cidade. Achou que seria perigoso ir tão bem aperaltado de autocarro ou no metro, sujeito à panóplia de odores desagradáveis que àquela hora da manhã já povoavam os apertados espaços disponíveis nos transportes públicos usuais.
Parou em frente à deslumbrante construção de dezenas de andares de altura. Olhou para cima tentando avistar um cume que parecia estar fora do alcance da vista, notando a face inferior das letras garrafais que anunciavam um dos maiores bancos do país. Engoliu em seco, ajustou o nó da gravata, apertou os dedos com força em redor da pega da sua pasta castanha escura e avançou em direcção à porta que se abriu assim que ficou a um par de metros da mesma.
Contínua...
quarta-feira, 18 de dezembro de 2013
Ramiro
Ramiro era louco por minhocas. Enquanto fosse dia, o jovem galo, andava constantemente de cabeça para baixo em busca daqueles insectos gelatinosos de tão bom sabor. Preferia as azuis, as mais raras e por isso mais valiosas.
Apesar de seu porte de respeito e das penas multicoloridas que brilhavam ao sol, as minhocas, distraídas por natureza, nunca davam pelo galito. Já era tarde demais quando o bico fazia pontaria à sua presa.
Os galos mais velhos, em especial o chefe do galinheiro que tanta inveja sentia pela beleza do novato e que sabia bem ser o seu sucessor natural, andavam sempre a avisá-lo para não andar sempre de cabeça para baixo. Não teria sempre a sorte da vigia do céu por parte dos colegas, já que era precisamente do céu que o maior perigo descia, uma águia real, que tinha fugido de um circo que em tempos passara na aldeia e que agora assombrava todo o vale.
Certo dia Ramiro, na sua azáfama tão habitual, decidiu que aquele dia seria diferente, pois o objectivo era caçar uma minhoca azul, daquelas que já não encontrava à bastante tempo. Tinha esgravatado todo o quintal e nada, optando por se aventurar além fronteira, invadindo um descampado vizinho, terreno novo, totalmente desconhecido.
Finalmente encontrou a maior e mais gordinha minhoca azul de sempre. Seria um verdadeiro banquete naquela tarde, um festim, a inveja de todos os que tinham ficado no galinheiro. Porém aquela minhoca não era um insecto qualquer. Era um espécime conhecedor de várias línguas e dominava bem o dialecto do seu caçador. E mais ágil também, escapando diversas vezes às investidas do bico agressor, um desafio tentador para Ramiro.
"Não me comas Ramiro." - disse-lhe deixando o bicho abismado, por ser conhecido daquele lado da cerca - "Nunca se sabe quando precisarás de mim."
"E que pode uma deliciosa minhoca azul fazer por mim?" - questionou o galito.
"Posso por exemplo avisar-te que neste preciso momento em que me tentas bicar, a águia que patrulha o céu já te faz pontaria e possivelmente já não te safas."
Apesar de desconfiado, lembrou-se dos conselhos dos galos velhos. Por instinto deu um pulo em frente, escapando às garras da ave de rapina por a distância correspondente ao tamanho de uma minhoca verde.
Ramiro safou-se à conta do aviso daquela minhoca azul. Agradeceu e partiu, deixando-a viver. A partir daquele dia passou a ser mais atento ao perigo vindo do céu, não perdendo porém o vício por minhocas, deixando de procurar minhocas azuis e fixando-se especialmente em minhocas verdes. Afinal as azuis já não habitavam no seu quintal e necessidade não havia de correr perigos noutras paragens.
Moral da história: Vale mais uma minhoca azul que um galo vistoso distraído.
Ou
Uma minhoca deliciosa não vale o ataque de um inimigo.
Tomaaaa...
18 de Dezembro de 2013 (8:30 - 9:00)
Apesar de seu porte de respeito e das penas multicoloridas que brilhavam ao sol, as minhocas, distraídas por natureza, nunca davam pelo galito. Já era tarde demais quando o bico fazia pontaria à sua presa.
Os galos mais velhos, em especial o chefe do galinheiro que tanta inveja sentia pela beleza do novato e que sabia bem ser o seu sucessor natural, andavam sempre a avisá-lo para não andar sempre de cabeça para baixo. Não teria sempre a sorte da vigia do céu por parte dos colegas, já que era precisamente do céu que o maior perigo descia, uma águia real, que tinha fugido de um circo que em tempos passara na aldeia e que agora assombrava todo o vale.
Certo dia Ramiro, na sua azáfama tão habitual, decidiu que aquele dia seria diferente, pois o objectivo era caçar uma minhoca azul, daquelas que já não encontrava à bastante tempo. Tinha esgravatado todo o quintal e nada, optando por se aventurar além fronteira, invadindo um descampado vizinho, terreno novo, totalmente desconhecido.
Finalmente encontrou a maior e mais gordinha minhoca azul de sempre. Seria um verdadeiro banquete naquela tarde, um festim, a inveja de todos os que tinham ficado no galinheiro. Porém aquela minhoca não era um insecto qualquer. Era um espécime conhecedor de várias línguas e dominava bem o dialecto do seu caçador. E mais ágil também, escapando diversas vezes às investidas do bico agressor, um desafio tentador para Ramiro.
"Não me comas Ramiro." - disse-lhe deixando o bicho abismado, por ser conhecido daquele lado da cerca - "Nunca se sabe quando precisarás de mim."
"E que pode uma deliciosa minhoca azul fazer por mim?" - questionou o galito.
"Posso por exemplo avisar-te que neste preciso momento em que me tentas bicar, a águia que patrulha o céu já te faz pontaria e possivelmente já não te safas."
Apesar de desconfiado, lembrou-se dos conselhos dos galos velhos. Por instinto deu um pulo em frente, escapando às garras da ave de rapina por a distância correspondente ao tamanho de uma minhoca verde.
Ramiro safou-se à conta do aviso daquela minhoca azul. Agradeceu e partiu, deixando-a viver. A partir daquele dia passou a ser mais atento ao perigo vindo do céu, não perdendo porém o vício por minhocas, deixando de procurar minhocas azuis e fixando-se especialmente em minhocas verdes. Afinal as azuis já não habitavam no seu quintal e necessidade não havia de correr perigos noutras paragens.
Moral da história: Vale mais uma minhoca azul que um galo vistoso distraído.
Ou
Uma minhoca deliciosa não vale o ataque de um inimigo.
Tomaaaa...
18 de Dezembro de 2013 (8:30 - 9:00)
domingo, 15 de dezembro de 2013
2
Que manhã tão complicada, até o centro comercial estava a abarrotar. Na zona da restauração a enchente era tanta que encontrar uma mesa vazia era simplesmente uma missão impossível. Já de tabuleiro nas mão, avistei um lugar vago numa mesa dupla. Não me fiz rogado e dirigi-me ao local e pedi se me podia sentar.
Qual o meu espanto quando reparo que eras tu que estavas sentado à mesa. Não te via há uns três meses, desde aquela festa em cada da nossa amiga comum. Convidaste-me a sentar e aproveitámos para colocar a conversa em dia.
De quando em vez os nossos olhares cruzavam-se e eu sentia um calafrio a percorrer o meu corpo. Tu desviavas o olhar e notava-se um ruborzinho nas tuas faces. Ficavas ainda mais bonito com aquela cor, como se se notasse ainda réstias da meninice que ainda habitava em ti.
O tempo passou, meia hora talvez. Acabaste de comer e tinhas que ir embora. Demos um aperto de mão e para despedida pedi-te o contacto telefónico. Coraste um pouco mais, foste com uma mão ao bolso do casaco e tiraste um cartão de visita azul. E eu nem sequer uma caneta tinha para te retribuir.
Qual o meu espanto quando reparo que eras tu que estavas sentado à mesa. Não te via há uns três meses, desde aquela festa em cada da nossa amiga comum. Convidaste-me a sentar e aproveitámos para colocar a conversa em dia.
De quando em vez os nossos olhares cruzavam-se e eu sentia um calafrio a percorrer o meu corpo. Tu desviavas o olhar e notava-se um ruborzinho nas tuas faces. Ficavas ainda mais bonito com aquela cor, como se se notasse ainda réstias da meninice que ainda habitava em ti.
O tempo passou, meia hora talvez. Acabaste de comer e tinhas que ir embora. Demos um aperto de mão e para despedida pedi-te o contacto telefónico. Coraste um pouco mais, foste com uma mão ao bolso do casaco e tiraste um cartão de visita azul. E eu nem sequer uma caneta tinha para te retribuir.
sábado, 7 de dezembro de 2013
1
Conhecemo-nos numa festa de uma amiga comum. Eu já bem perto das quatro décadas de vida, solteiro, trabalhador. Tu recentemente a trabalhar na capital numa grande empresa farmacêutica, natural de Aveiro, com pouco mais de três décadas neste mundo e muitos sonhos pela frente.
Lembro como estavas tímido nessa noite. Eras afinal um quase desconhecido naquele evento privado. Colega da nossa anfitriã, praticamente sem conheceres a maioria dos presentes. Eu era já costumeiro na casa e nela me movimentava quase como se fosse minha. Conhecia já todos os cantos da mesma e como os donos da casa diziam, eu era visitante assíduo da cozinha e especialmente do frigorífico.
Estavas sentado junto à lareira, de copo na mão, olhando em redor, como se esperasses que alguém metesse conversa contigo. Eu cheguei e perguntei se estava tudo bem. Olhaste para mim e disseste que apenas te sentias um pouco deslocado. Naquele momento, quando os nossos olhares se cruzaram, senti um arrepio. Deves ter sentido o mesmo, pois desviaste o olhos em busca de um ponto que te desconcentrasse.
As horas foram passando e quase nos esquecemos que estávamos numa festa, rodeados de outras vinte pessoas. Na verdade estávamos sozinhos, pelo menos era essa a minha percepção, pois chamaram-me várias vezes e nem dei por isso. Porém a nossa amiga comum arrastou-me até à cozinha, havia um problema que só eu saberia resolver.
Quando a festa acabou dei-te boleia. Mal conhecias a cidade e afinal a minha casa ficava na mesma direcção. Ainda era cedo e passámos por um café, onde nos sentámos na mesa mais distante do balcão. Bebemos chá, acompanhado por uns bolinhos secos que restavam na vitrina. Uma hora depois fomos embora, entrámos no meu carro e arranquei.
Deixei-te à porta do prédio. Tão estúpido que fui, esqueci-me de pedir o teu contacto.
Lembro como estavas tímido nessa noite. Eras afinal um quase desconhecido naquele evento privado. Colega da nossa anfitriã, praticamente sem conheceres a maioria dos presentes. Eu era já costumeiro na casa e nela me movimentava quase como se fosse minha. Conhecia já todos os cantos da mesma e como os donos da casa diziam, eu era visitante assíduo da cozinha e especialmente do frigorífico.
Estavas sentado junto à lareira, de copo na mão, olhando em redor, como se esperasses que alguém metesse conversa contigo. Eu cheguei e perguntei se estava tudo bem. Olhaste para mim e disseste que apenas te sentias um pouco deslocado. Naquele momento, quando os nossos olhares se cruzaram, senti um arrepio. Deves ter sentido o mesmo, pois desviaste o olhos em busca de um ponto que te desconcentrasse.
As horas foram passando e quase nos esquecemos que estávamos numa festa, rodeados de outras vinte pessoas. Na verdade estávamos sozinhos, pelo menos era essa a minha percepção, pois chamaram-me várias vezes e nem dei por isso. Porém a nossa amiga comum arrastou-me até à cozinha, havia um problema que só eu saberia resolver.
Quando a festa acabou dei-te boleia. Mal conhecias a cidade e afinal a minha casa ficava na mesma direcção. Ainda era cedo e passámos por um café, onde nos sentámos na mesa mais distante do balcão. Bebemos chá, acompanhado por uns bolinhos secos que restavam na vitrina. Uma hora depois fomos embora, entrámos no meu carro e arranquei.
Deixei-te à porta do prédio. Tão estúpido que fui, esqueci-me de pedir o teu contacto.
quarta-feira, 4 de dezembro de 2013
Constipação
Certos acontecimentos da vida dão-me inspiração para escrever coisas assim:
Se os dias pareciam grandes demais, as
noites eram intermináveis. O calor invadia todo o meu corpo e o suor
saía de cada poro e viajava pela pele, alojando-se na roupa. Dores
trespassavam todos os músculos, chegando aos ossos. E aquela névoa
que rondava cada célula que povoa a minha cabeça, acompanhando
aquela matéria viscosa que saía da cavidade nasal em fios
intermináveis.
Sentia-me completamente desprotegido,
fora atacado como nunca antes tinha sido. A fraqueza estava instalada
em mim, arrastava-me para o mais fundo que alguma vez sentira. O
silêncio, só interrompido pelos gemidos que timidamente me saíam
das cordas vocais, mantinha-se tão frio como o ar que preenchia cada
espaço livre da casa.
Foi então que me pareceu ouvir, lá
longe, o rodar da chave na fechadura da porta da rua. Senti
uma pequena vibração provocada por cada passo no frio chão de
mosaico. Olhei em direcção da porta e imaginei a maçaneta a rodar
aos poucos, por causa dos rangidos que dela vinha. Naquela meia
penumbra vi uma sombra aproximar-se da cama, um peso extra em cima do
colchão e uma mão em minha direcção.
“Pronto, já cá estou…”
Fechei os olhos e saíram duas
lágrimas. Um par de lábios tocou os meus, que por puro instinto se
entregaram sem sequer se certificarem se se tratavam de objectos
estranhos ao corpo. E naquele momento, como pura magia, o calor que
me invadia diminuiu, as dores desvaneceram-se e uma sensação de
bem-estar invadiu o corpo tão enfraquecido.
Ao fim de três dias aos teus cuidado
senti-me completamente renovado. Uma nova primavera caiu sobre mim e
em seguida outro verão acabou por se instalar definitivamente no nosso
espaço.
sexta-feira, 22 de novembro de 2013
O conto da Margarida
O
grupo reunia-se invariavelmente todas as noites. Um grupo de membros
heterogéneos que preenchiam cada um dos lugares disponíveis. Não
havia liderança. Os mais velhos davam a palavra aos mais jovens
embora se notasse um respeito por parte dos últimos pelos que tinham
mais experiência de vida.
O grupo era dono da noite, todo o espaço circundante lhes pertencia. O barulho provocava os cães e os outros moradores, os que viam na noite a oportunidade de descansarem para um novo dia de trabalho. Várias eram as vezes em que baldes de água, latas, sapatos velhos, voavam em direcção aos membros, que fugiam e gargalhavam pela falta de pontaria.
Não eram vagabundos. Assim que surgiam os primeiros raios de sol, retornavam a casa. Deitavam-se de papos para o ar, refastelados ao sol, na protecção das intempéries. Comiam e bebiam e à noite voltava aquela lufa-lufa que tinham já vivido na noite anterior.
Certa noite algo estava diferente, o número de membros diminuiu. Os mais velhos deram pela falta de duas mais novitas, que normalmente o acompanhavam, quase coladas. As duas em questão eram bem diferentes do resto do grupo, queriam mais do que os outros na realidade lhes podiam dar. Tinham sede de saber, conhecer o que se passava além das fronteiras quase rígidas, impostas pelas gerações anteriores. Afinal o mundo era tão grande e custava-lhes ficar limitadas àquele território.
As noites passaram e não apareciam. Um dos mais velhos, curioso, dirigiu-se então à sua casa, já que viviam juntas. Queria uma explicação, não queria acreditar que aquelas duas se tinham fartado do grupo. Estariam doentes?
Foi então que descobriu a verdade. As duas, ávidas de saber, passavam as noites em casa acompanhando aquela que lhes podia transmitir as coisas que o resto do mundo tem. As prateleiras repletas de livros, evidenciavam as longas noites de leitura e aprendizagem que aconteciam naquele espaço. O ancião do grupo entendeu então qual a razão para a ausência das duas.
Perceberam que estavam a ser observadas do lado de fora da janela. Uma delas foi então ao exterior e falou com o vulto. Explicou-lhe que a ausência devia-se ao facto da sua dona estar sozinha em casa e precisar de companhia. Em contrapartida os livros davam-lhes conhecimentos, daqueles que o grupo não conseguia satisfazer.
Tal como prometeram ao ancião algumas noites antes, as gatitas retornaram ao grupo algumas noites por semana. Passaram elas a ser as mais entendidas em diversos assuntos. Não se deixavam porém levar pelo conhecimento. Tinham novas histórias para contar e acima de tudo respeitavam os outros membros do grupo.
Margarida sentia-se bem junto dos seus livros e das adoradas gatas, que apesar de passarem algumas noites deitadas junto a ela, pareciam absorver todas as palavras que lia, evidenciado pelos movimentos constantes das orelhas das duas aprendizas. Livros e companhia das gatas… afinal já pouco faltava…
O grupo era dono da noite, todo o espaço circundante lhes pertencia. O barulho provocava os cães e os outros moradores, os que viam na noite a oportunidade de descansarem para um novo dia de trabalho. Várias eram as vezes em que baldes de água, latas, sapatos velhos, voavam em direcção aos membros, que fugiam e gargalhavam pela falta de pontaria.
Não eram vagabundos. Assim que surgiam os primeiros raios de sol, retornavam a casa. Deitavam-se de papos para o ar, refastelados ao sol, na protecção das intempéries. Comiam e bebiam e à noite voltava aquela lufa-lufa que tinham já vivido na noite anterior.
Certa noite algo estava diferente, o número de membros diminuiu. Os mais velhos deram pela falta de duas mais novitas, que normalmente o acompanhavam, quase coladas. As duas em questão eram bem diferentes do resto do grupo, queriam mais do que os outros na realidade lhes podiam dar. Tinham sede de saber, conhecer o que se passava além das fronteiras quase rígidas, impostas pelas gerações anteriores. Afinal o mundo era tão grande e custava-lhes ficar limitadas àquele território.
As noites passaram e não apareciam. Um dos mais velhos, curioso, dirigiu-se então à sua casa, já que viviam juntas. Queria uma explicação, não queria acreditar que aquelas duas se tinham fartado do grupo. Estariam doentes?
Foi então que descobriu a verdade. As duas, ávidas de saber, passavam as noites em casa acompanhando aquela que lhes podia transmitir as coisas que o resto do mundo tem. As prateleiras repletas de livros, evidenciavam as longas noites de leitura e aprendizagem que aconteciam naquele espaço. O ancião do grupo entendeu então qual a razão para a ausência das duas.
Perceberam que estavam a ser observadas do lado de fora da janela. Uma delas foi então ao exterior e falou com o vulto. Explicou-lhe que a ausência devia-se ao facto da sua dona estar sozinha em casa e precisar de companhia. Em contrapartida os livros davam-lhes conhecimentos, daqueles que o grupo não conseguia satisfazer.
Tal como prometeram ao ancião algumas noites antes, as gatitas retornaram ao grupo algumas noites por semana. Passaram elas a ser as mais entendidas em diversos assuntos. Não se deixavam porém levar pelo conhecimento. Tinham novas histórias para contar e acima de tudo respeitavam os outros membros do grupo.
Margarida sentia-se bem junto dos seus livros e das adoradas gatas, que apesar de passarem algumas noites deitadas junto a ela, pareciam absorver todas as palavras que lia, evidenciado pelos movimentos constantes das orelhas das duas aprendizas. Livros e companhia das gatas… afinal já pouco faltava…
terça-feira, 24 de setembro de 2013
textos inacabados (1)
Era minha intenção parar de escrever por uns dias mas o "bichinho" não me deixa em paz. Inauguro aqui uma série de textos que ficarão inacabados, possivelmente para sempre. Um amigo diz-me que serei um escritor famoso por não terminar o que começo. Tem sido assim em muitos momentos da minha vida, mas isso é outra conversa.
Aproveitando a época eleitoral actual comecei a escrever uma história com a campanha como tema de fundo. Os nomes das personagens escolhidas vieram à cabeça com naturalidade, por isso não devem ser confundidas com possíveis conhecimentos que eu tenha. Gosto dos nomes e pronto.
Apenas mais um dia de campanha eleitoral numa movimentada rua da cidade. Uma multidão seguia o candidato, cabeça de lista para o principal órgão executivo da região. Marco, um jovem de apenas 22 anos, encontrava-se no meio da confusão. Uma bandeira na mão esquerda, na outra um megafone, a mandar palavras de ordem, de apoio. Os seus cabelos, orgulho daquele rapaz de pele bronzeada, resultado de um verão passado na praia, esvoaçavam com a brisa que se fazia sentir, naquela tarde praticamente outonal.
Aproveitando a época eleitoral actual comecei a escrever uma história com a campanha como tema de fundo. Os nomes das personagens escolhidas vieram à cabeça com naturalidade, por isso não devem ser confundidas com possíveis conhecimentos que eu tenha. Gosto dos nomes e pronto.
Apenas mais um dia de campanha eleitoral numa movimentada rua da cidade. Uma multidão seguia o candidato, cabeça de lista para o principal órgão executivo da região. Marco, um jovem de apenas 22 anos, encontrava-se no meio da confusão. Uma bandeira na mão esquerda, na outra um megafone, a mandar palavras de ordem, de apoio. Os seus cabelos, orgulho daquele rapaz de pele bronzeada, resultado de um verão passado na praia, esvoaçavam com a brisa que se fazia sentir, naquela tarde praticamente outonal.
Apertos de mão, abraços, conversas,
promessas certamente faltas. Tudo normal para uma campanha eleitoral
em que a imagem se torna cada vez mais importante, deixando para trás
as qualidades que realmente interessam para o posto que será
ocupado. E Marco apoiava tudo aquilo. Não por ser igual mas por
querer ser diferente. Sonhador dizem alguns; força de vontade em
querer mudar, dizia para si próprio o rapaz, que quase rouco, seguia
o cortejo, quantas vezes arrastado, quase no ar.
Uma rua mais larga surgiu de repente. A
multidão espalhou-se e Marco pôde finalmente tocar com os pés no
chão. Decidiu parar um pouco para recuperar o fôlego e sentou-se na
primeira esplanada que encontrou.
“Uma água fresca faz favor”, pediu
Marco ao empregado que rapidamente chegara à mesa. A garrafa de
litro e meio depressa veio parar à sua beira. Pensou para si que era
um exagero, mas a verdade é que num ápice virou três copos quase a
entornarem. Sabia-lhe bem a frescura naquela tarde ainda quente.
Olhou em volta e deu-se conta de que a multidão tinha dispersado
quase na totalidade. Talvez tivessem ido em busca de sombras ou
simplesmente invadido os cafés instalados em redor. O candidato
meteu-se pelo centro comercial da esquina e Marco ficou para trás.
Nem se preocupou com a campanha, afinal estava ali tão bem naquela
sombra. “Amanhã há mais”, disse baixinho.
“Desculpe, pode-me dizer onde fica
esta rua?”. Marco virou-se para a direita em busca da boca por onde
saiu aquela pergunta, Junto de sim, um rapaz aparentando a mesma
idade, olhava-o com um papel na mão, esperando uma resposta.
Notava-se o aspecto de turista pois as roupas frescas, mochila,
óculos escuros e uma ténue mancha de suor assim o comprovavam.
Marco tentou explicar mas atrapalhou-se e perdeu-se nas indicações.
“Olhe o melhor é eu levá-lo até lá ou ainda se perde, já que
vou para aquela zona também”, prontificou-se Marco.
A malha urbana era realmente demasiado
complicada de se explicar. Marco meteu por aquelas ruas que conhecia,
talvez querendo até mostrar o seu lado de guia turístico ao rapaz
que a seu lado ía, atento às explicações que lhe eram dadas sobre
alguns edifícios. Chamava-se Chico e estava a descobrir a cidade.
Preferia o final do verão, antes de começar as aulas na faculdade,
onde estudava arte e design.
“Olha, eu também estudo lá”,
disse Marco. “Eu sei... já te vi por lá”, respondeu Chico com
um sorriso nos lábios e tirando os óculos de sol, mostrando os
lindos olhos que por trás deles se escondiam. “A verdade é que
conheço bem a cidade, mas foi um pretexto que encontrei para falar
contigo”. Marco ficou espantado...
domingo, 22 de setembro de 2013
O final prometido
Chegou a hora de terminar um conto que escrevi recentemente e que já tinha publicado as seis partes iniciais, faltando unicamente duas. Republiquei todo o texto para dar algum nexo ao que faltava publicar. Peço perdão pelo "testamento" que vos deixo, mas podem sempre ler apenas o que vos interessar.
Capítulo
1 – O avião
Tardiamente
percebi que a tua ausência seria motivo suficiente para enlouquecer.
Naquela manhã acordei e percebi que não estavas comigo. Que tonto
fui. Podia ter largado tudo e com medo quiçá de mim próprio,
deixei-te partir. Tomei um garrafão de coragem, enchi uma pequena
mala de roupa e saí de casa. O banco estava apinhado naquela manhã.
Dia de pagamento das reformas. Levantei quase todas as minhas
economias deixando o gerente daquela dependência bancária de boca
aberta. Já me conhecia há muitos anos e sabia o quão sovina eu
sempre fora. Teria enlouquecido?
O
trânsito estava anormalmente lento. E eu, que queria chegar rápido
ao aeroporto, desesperava, cada vez que o taxista pisava o pedal dos
travões. Praguejava para mim mesmo, ao contrário do motorista que,
com a sua rudez, se esquecia constantemente que eu estava já ali
atrás.
Entrei
apressado por aquele espaço, que embora não me fosse desconhecido
era a catedral da confusão. Apressei-me para a bilheteira e adquiri
o tal bilhete de avião. Estava já à porta de embarque quando me
lembrei que nunca tinha tirado os pés do chão. Queria voltar atrás.
Afinal se Deus quisesse que eu voasse tinha-me mandado à terra como
pássaro. Venci o meu medo pensando na razão que me tinha levado até
ali, estiquei o peito e mesmo nervoso, disse para mim mesmo que o
medo é coisa que não me assiste (onde é que eu já li isto?!).
Todo
eu tremia, agarrado com todas as minhas forças ao banco. Quem me
dera que aquele banco tivesse mais cintos, um só parecia-me pouco.
Desejei que aquele voo fosse como aqueles que se vêm nos filmes de
ficção científica, em que se adormece numa cápsula e só se
acorda no destino. «É a primeira vez que voa?», perguntou-me a
senhora que estava a meu lado. Com alguma dificuldade abri os olhos e
visualizei aquela senhora idosa toda vestida de preto e branco. À
primeira vista parecia um pinguim mas era apenas uma carinhosa
freira. Pousou a sua engelhada mão sobre a minha e disse «Deus está
connosco e nada de mal acontecerá!».
Afinal
aquilo lá em cima não era o que eu pensava. Fitei um ponto no banco
da frente e assim me mantive algum tempo. Uma voz doce saiu das
colunas a avisar que teríamos que voltar a colocar os cintos.
Voltar?! Eu nem sequer o tinha tirado ainda. Livra. Sentiu-se
turbulência e fechei de novo os olhos. Todo o aparelho tremia e eu
agarrava-me com todas as forças, quase fixando os meus joelhos ao
banco da frente.
Capítulo
2 – A porta
Quando
voltei a abrir os olhos não vi ninguém. Mantinha-me no meu lugar
mas a meu lado já não estava a freira e o avião parecia estar
parado. Não se ouviam as turbinas e dentro do espaço havia uma
espécie de nevoeiro. Uma voz doce. «Então vai ficar aí por muito
tempo? Os outros já sairam». Virei a cabeça e vi talvez o rapaz
mais bonito com quem já me tinha cruzado. Cabelos louros, ouro puro.
Olhos azuis, profundos. Lábios rosados, carnudos. Nariz na proporção
correcta, um sonho. Bata branca, imaculadamente lavada. «Já
parámos?», perguntei. Aquela linda cabeça acenou. «Estamos à tua
espera lá fora. Vem comigo».
Levantei-me
surpreendentemente devagar. Afinal desde a altura que entrei naquere
aparelho diabólico, que desejava sair o mais rápido possível.
Cheguei à porta, não havia escada. «Mas como raios vou eu sair
daqui? Onde está a escada?». Aquele jovem lindíssimo olhou para
mim, pegou a minha mão e avançámos para o abismo. Contrariamente
ao que eu esperava flutuámos suavemente até atingirmos um tapete
tão imaculadamente branco como a bata e as asas do meu “transporte”.
«Asas?! Mas afinal onde é que eu estou?!»
A paz
invadiu todo o meu corpo. Quando abri os olhos quase gritei. Afinal
era apenas a velha freira que me olhava de cima. «Então meu filho,
que se passa?». «Onde é que estamos?». «No céu meu filho, no
céu.». «No céu? Então não era suposto já estarmos no chão?!».
«Meus
senhores, para quem ainda não tenha percebido, estão todos mortos.
Isto é o céu e daqui a pouco chegará o transporte que os levará
ao portão número 1. Para quem não saiba, o portão número 1 é
guardado por S. Pedro. Tenham cuidado que nem sempre está de bom
humor. Pudera... é dono de meio mundo lá na terra e está por aqui
preso a guardar o portão do paraíso». Aquela voz rofenha,
claramente de quem já fazia esta apresentação fazia alguns
séculos, dava todas as indicações. «Crianças vão à frente e
depois as mulheres. Os homens esperam e se não houverem lugares vão
de pé.» Olhem, no céu também existem problemas com os transportes
públicos. Será por causa da Troika?!
Capítulo
3 – Espera
S.
Pedro parecia visivelmente cansado quando me apresentei. Nem consegui
dizer o meu nome pois interrompeu-me na hora. «Sei bem quem és!
Está tudo escrito aqui no livro da vida e da morte.» Fitou-me. «Ora
vamos a ver... filho de fulano e beltroa... católico... menos mau...
solteiro... meia dúzia de pecados menores... umas multas de trânsito
que já não serão pagas... parece que o banco perdeu um cliente...
ficaste a dever no restaurante no Manuel?!» Corei. «Logo do Manuel?
Um dos nossos bons fornecedores... que o meu patrão o perdoe.»
A
sala estava bem decorada. S. Pedro mantinha-se junto a um velho
computador resmugando. O software estava um pouco desactualizado e a
velocidade da máquina deixava muito a desejar. Os dados pareciam
estar correctos mas o cálculo não estava correcto. Constantemente
aparecia uma mensagem, dando conta de um erro. «Raios para esta
tecnologia. Onde é que eu guardei o manual de instruções?! Ah,
está aqui junto à Biblia.» S. Pedro abriu um pequeno volume de
papel já amarelecido e procurou no índice a página dos erros.
Ajeitou os óculos e olhou para mim por cima das lentes. Pegou noutro
volume, desta vez de capa lilás, folheou-o, leu o que estava escrito
e disse «Oh meu Deus... mais um?!»
O
corredor parecia não ter fim. Quadros decoravam as paredes.
Paredes?! Na realidade pareciam pairar no ar. Molduras de vários
estilos envolviam pinturas antigas. De quando em vez apareciam uns
esgatafunhos. Aproximei-me de um quadro e por baixo estrava escrito
“Picasso – 2013”. Parámos. A fila era grande, quase não se
via o início. O anjo mandou-me esperar.
Mais
uma sala, mas desta vez a decoração era deplorável. Bancos
corridos dispunham-se ao longo do espaço. Centenas de almas estavam
sentadas à espera. Sentei-me junto a um velho de cabelos brancos,
que me tirou todas as medidas num ápice. «Acabaste de chegar né?»
perguntou-me. Respondi afirmativamente. «Não te preocupes, daqui a
uma eternidade vais ser atendido.»
Capítulo
4 - Reclamação
Acho
que não aqueci lugar pois fui chamado de imediato. «Terceiro
gabinete à esquerda.» Disse-me um rapaz bem apessoado. Segui,
entrei no tal gabinete e sentei-me. O assento estava frio, mármore.
Na secretária, de carvalho velho, um homem, de cabeça virada para
os papéis, resmungava. Parece que no céu estão todos mal
humorados. Ao que parece, pelo que me disse o velho, as contigências
financeiras obrigaram a autentar o número de horas de trabalho. Até
os arcanjos já pensavam em fazer greve. «Sabe porque está à minha
frente?» perguntou-me. Acenei a cabeça negativamente. «Está aqui
porque o raio do software do cálculo do coeficiente de entrada no
céu deu erro de novo. E quando dá erro mandam sempre aqui para o
velho Joseph Ratzinger. Raios de sorte a minha. Tanto que eu lutei em
vida e agora isto.»
«Nos
termos da adenda ao artigo 6969 do regulamento de acesso às portas
do paraíso, que muito foi contestado mas que o patrão foi
resolutivo, todos os homossexuais têm o direito de se arrependerem.
Por isso tem uma de duas opções: ou se arrepende imediatamente ou
ficará na sala à espera que se arrependa.»
Já
esperava há uma eternidade quando me lembrei que sendo a burocracia
do céu tão parecida com a da terra, decerto haveria uma solução
para o meu problema. Lembrei-me então de ir até ao guichet e pedir
o livro de reclamações. Um trovão iluminou o tecto e todos olharam
em minha direcção. O homem, de olhos esbugalhados, abriu a boca.
Quase dava para lhe ver o estômago. «Livro de reclamações?!».
Indicaram-me
uma sala de porta verde. Não a consegui abrir à primeira, de tão
enferrujada que estava. Talvez fizesse muito tempo que não era
aberta. Pelo menos estava limpa. Um banco iluminado, de tecido
felpudo, esperava por mim. Sentei-me e como por magia, apareceu uma
secretária, uma caneta e uma folha de papel.
Assim
que pousei a caneta no papel para escrever a minha reclamação, um
novo trovão entoou pelo espaço. Desta vez o susto foi ainda maior.
E do meio de uma nuvem apareceu um homem de toga branca debruada por
uma renda azul celeste. «Com que então não estás satisfeito com
as regras da casa?!»
Capítulo
5 – Regulamento
O
jardim era mais maravilhoso do que tudo o que já vira anteriormente.
Árvores enormes formavam um claustro, rodeando um lago com água tão
clara que se viam os peixes e as pedras lá dentro. Quando nos
aproximámos daquele espelho um peixe veio à superfície, como que a
cumprimentar o homem de toga. Aves esvoaçavam pelo ar. Pássaros de
mil e uma cores, brilhantes. Sentámo-nos sobre uma pedra e
conversámos.
«Quando
escrevi o regulamento de acesso às portas do paraíso tudo era mais
fácil», explicou-me Deus. «Não havia confusão porque quase não
haviam pessoas. Com o passar dos séculos o caso mudou de figura.
Para começar os homens tornaram-se fúteis, interesseiros,
desordeiros. Não cumpriam as regras que lhes impunha». Olhei-o.
«Mas não é suposto o homem gozar do livre arbitrio?!». «Sim, era
essa a ideia inicial. Pelo menos pensava eu que era, mas mudou muito
o ser humano. Então tive que ir mudando as regras, tentando adaptar
o regulamento à realidade. Durante muitos séculos não foram
necessárias grandes mudanças mas ultimamente a coisa pia de outra
forma.». «Então e porque é que nós somos diferentes? Não
merecemos o teu amor de igual forma?», perguntei. Deus levantou-se,
espreguiçou-se e voltou a sentar-se. «Qualquer pai deve amar os
seus filhos, independentemente dos disparates que façam ou dos
caminhos que tomem. E eu não sou diferente. O problema é que até o
paraíso se tornou político.». Achei a expressão estranha. «Os
anjos e os arcanjos passaram a ter opiniões diferentes e os santos
vieram colocar ainda mais questões. Vê o caso de Pedro. Tem dias
que ninguém o consegue aturar. É a velhice, dizem alguns... mas eu
acho que é mesmo casmurro. Se calhar é defeito de ter sido
pescador.». Mandou uma gargalhada sonora que até um unicórnio se
assustou. «E não era dos melhores até eu o ter ajudado a pescar
com fartura.»
«Então
quer dizer que tens um regulamento mas não concordas com ele.
Parece-me um pouco estranho, uma vez que és o criador de tudo.».
Deus fitou-me. «Pois. A realidade é que aqui no céu apesar de eu
governar como todo poderoso não sou nenhum ditador. Já foi o tempo
em que eu tinha que decidir tudo. Um dia decidi que devia partilhar a
responsabilidade. Numa visita à terra, encontrei uma rapariga bonita
e perdi-me de amores por ela. Ora como era minha intensão partilhar
o governo do céu, qual a melhor solução além de encontrar um
herdeiro? E assim nasceu Jesus, o meu filho e herdeiro.»
Capítulo
6 – Patrão
Perdia-se
de vista a mesa onde tomávamos chá. Deus no topo, que confessou ter
uma predilecção especial por pastéis de nata, tinha à sua frente
o que deveriam ser pelos meus cálculos, cerca de duas dúzias de tal
iguaria. Eu não tinha fome e fiquei-me pelo delicioso chá de uma
mistura de ervas, mantida em segredo, resultado de séculos de
experiências do arcanjo Gabriel. Continuei a conversa. «Mas Deus e
que faz Jesus afinal?». «Olha meu filho, actualmente substitui-me
nas minhas visitas a todos os mundos que criei. A minha idade tem-me
obrigado a ficar um pouco mais pelo paraíso. A minha idade e S.
Lucas com as suas manias de médico. Vê lá que agora inventou que
me devo tornar vegetariano.» Nova gargalhada entoou pelo espaço,
assustando desta vez um par de pombas brancas que estavam pousadas
num candeeiro de pé alto, junto a um velho telefone de manivela. «E
Jesus não é um filho obediente?», inquiri. «Olha, é como o
tempo: uns dias bons, outros maus. Mas também tem boas qualidades.
Foi ele o responsável pela informatização do paraíso. Organizou a
biblioteca e criou uma aplicação que pondera as boas acções e as
más, para avaliar a entrada no paraíso.». Sorri. «Ou seja, aquela
aplicação que S. Pedro tando desgosta.». «Efectivamente. Mas a
verdade é que o Pedro agora até tem mais tempo para fazer outras
coisas, como pintar, que é uma grande paixão.»
«Uma
coisa me deixa intrigado. Como é que o paraíso tem tanto espaço
para todos os que já morreram ao longo nos milénios?». «Ainda bem
que me fazes essa pergunta, meu filho. Na realidade o paraíso não é
interminável e por vezes há a necessidade de enviar alguns lá para
a cave, que é o nome carinhoso que aqui damos ao inferno. É claro
que a aplicação informática tem dado uma boa ajuda e aqui só para
nós tem dado bastante resultado. Uma outra solução é mandar de
quando em vez as almas de novo para a terra.». Olhei-o.
«Reencarnação? Existe?!». «Claro que existe meu rapaz e é uma
das minhas maiores criações. Assim vou-me livrando dos excedentes e
dou segundas oportunidades a quem mais merece. Algumas almas precisam
de viver várias vezes para que a entrada no paraíso não seja posta
em causa.». «Tal como a minha está a ser?», perguntei.
«Meu
filho, o teu caso é especial. Quando atribui o livre arbitrio ao
homem sempre pensei que ele não o usasse para usurpar a natureza.
Esqueci porém que a natureza por si só é mutante, ganhou vontade
própria. Então decidi não me preocupar muito com o assunto pois
acredito que o amor é a par da amizade, o mais importante sentimento
que existe.». «Então porque é que o meu caso é especial?».
«Acontece que com a criação das religiões na terra, os membros
criaram regras próprias. Umas formam-me atribuídas por tradição e
outras por subversão. Ora, muitos desses legisladores quando
chegaram cá acima, quase reviraram a casa. Para haver harmonia
debaixo do meu tecto lá tive que ceder em alguns assuntos. Daí ter
criado algumas adendas ao regulamento. Se por um lado os calei, por
outro fiz ver que quem tem a última palavra acabo por ser sempre
eu.»
Capítulo
7 – Paraíso
Deus não mora no Paraíso Prefere ficar “fora de portas”. Diz que assim tem mais descanso e concentra-se melhor, algo que não acontece lá dentro devido às maravilhas que criou . Maravilhas que eu só podia imaginar. Mesmo assim todo aquele espaço exterior era deslumbrante. Os pequenos oásis rodeados de árvores e relva tão espantosamente verde. Ali habitavam além do Criador, o seu filho Jesus, S. Pedro e todo o restante staff. Haviam porém alguns que morando dentro do paraíso, exerciam actividades do lado de fora. Era o caso de alguns anjos e as ajudantes femininas do palácio real.
A
nossa conversa porém tinha alcançado um impasse. Os nossos pontos
de vista pareciam estar algo distantes. «Mas Deus, porque é que
devo arrepender-me de algo que me fez tão feliz na terra? Não é
isso que tu queres? Que sejamos plenamente felizes?». «Meu filho,
como já te expliquei, aqui também tenho que ceder um pouco nas
minhas convicções, mais não seja de forma aparente. Se eu for
totalmente a favor, os mais ortodoxos não me largam e se eu for
contra os progressistas dão-me cabo do juizo. Assim encontrei um
meio termo, obrigo as almas a arrependerem-se da vida que levavam na
terra e assim ficam todos mais ou menos satisfeitos.». «Mas isso
não é justo para mim nem para todos os que atrás virão. Nem
sequer para os que já estão à tanto tempo à espera naquela sala
sem fim.», argumentei. «Como vocês dizem lá não terra “Roma e
Pavia não se fizeram em um dia”, logo há que esperar.». Olhei-o
indignado. «Esperar o quê? Que mudes de opinião ou que alguém se
canse de esperar e contra todas as suas próprias convicções se
arrependa do mal que nunca fez?». Deus encolheu os ombros e seguiu
em frente.
Capítulo
8 - Tribunal
A
sessão do tribunal começou com a apresentação do caso perante o
colectivo de juízes, presidido pelo filho de Deus, Jesus.
Acompanhavam-no São Paulo à direita e Santo António do lodo
oposto. A minha defesa era um anjo com pouca experiência. A
acusação, um velho e batido anjo, que só ainda não tinha sido
promovido a arcanjo devido à sua suposta amizade com o "morador
lá de baixo", mais conhecido por Lúcifer.
O
julgamento era apenas uma fachada, tal como Deus já me tinha
avisado. Eu, o réu, há muito que estava condenado. Praticamente
desde o dia que cheguei às portas do Paraíso. Homossexuais ou pedem
perdão e renunciam à sua infame natureza ou irão pura e
simplesmente ter à "cave".
O
veredicto não foi assim qualquer surpresa. Por não me ter
arrependido, só restava um alçapão cuja abertura me levaria numa
abrupta viagem até ao Inferno. Recurso estava fora de questão e
Deus avisara-me antecipadamente que só interferia com a decisão do
tribunal em casos muito especiais. Claramente o meu não era, apesar
de raro.
Tinha
sido Deus a criar o céu e a terra, os planetas, as estrelas, o
Paraíso e o caminho para o andar de baixo. Reservou-me porém uma
pequena surpresa, prova da simpatia que cultivava por mim. O túnel
da descida tinha num ponto bem localizado uma bifurcação secreta,
uma espécie de saída que o Criador tinha inventado. Avisou-me que
não deveria contar a ninguém, pois não queria confusões
desnecessárias com os altos magistrados do Paraíso.
Despedi-me.
"Pode ser que no teu regresso haja mais abertura para o teu
caso" sussurrou-me ao ouvido, seguido de um sorriso e um piscar
de olho. O alçapão abriu-se de repente e lá fui eu por ali abaixo.
Tal como planeado, a bifurcação secreta estava já aberta, à minha
espera. Caí desamparado por meio das nuvens e a terra aproximava-se
cada vez mais de mim. A velocidade aumentava e só pensei que me iria
estatelar completamente num piso duro. Gritei.
"Pedro...
acorda! Que se passa?". Quase dei um salto na cama. Levantei-me
e sentei-me. Aparvalhado olhei em redor. Estava completamente suado e
a meu lado Marco olhava para mim estupefacto. "Não se passa
nada amor", descansei-o. Aproximei os meus lábios dos seus e
proporcionei-lhe um demorado beijo. Deitá-mo-nos e abraçados
adormecemos. Antes porém olhei pela janela. O céu estava limpo e lá
longe, na imensidão do espaço, uma estrela brilhou mais, como se de
um piscar de olhos se tratasse.
FIM
segunda-feira, 12 de agosto de 2013
A velha casa
(Este texto foi criado hoje mas é baseado num texto com cerca de 20 anos. Considero-o uma actualização necessária)
Acabaram de bater as onze badaladas no velho sino da igreja. Meto a chave já enferrujada na fechadura, tacteando, pois a lâmpada de fora há muito que se encontra fundida. As velhas dobradiças rangem e eu entro na penumbra. Acendo o candeeiro que mal ilumina a sala. O anterior proprietário devia ser um forreta, já que todas as lâmpadas ou são de fraca potência ou estão simplesmente mortas de tanto uso. Atiro a pasta ao chão, descalço os sapatos e sento-me pesadamente na poltrona de tecido gasto. Tento vislumbrar o espaço, mas a fraca luz só me deixa adivinhar o que está à minha volta.
Comprei esta casa há apenas 2 semanas. Mudei-me ontem mas esta será a primeira noite no velho casarão. Obras são precisas para que o edifício volte a ter o vigor de outros tempos. Festas e grandes recepções ocorreram neste espaço. Pelo menos assim falavam os vizinhos. Foram tempos de fartura, em que o vinho quase escorria pelo salão. O proprietário anterior, senhor de muitas terras, padrinho de meio mundo, era um mecenas. Mas era também um pobre homem, deixando-se enganar por falsas promessas de aumento da fortuna, que se revelaram verdadeiros fiascos. Terminou a vida quase a pedir esmola pelas ruas. Recebia apoio da Congregação, mas ninguém se atrevia a confirmar o facto. Afinal era ainda o mais alto representante de todas as boas causas sociais. Um exemplo a seguir por todos.
Deixei-me ficar na poltrona. Na minha cabeça, quente dos problemas laborais, ainda se formavam ideias para restabelecer o esplendor ao casario. Pintura nova, canalizações, renovação dos pisos. O velho celeiro seria transformado em salão de festas. No jardim, se se pudesse chamar de jardim efectivamente, seriam removidas as velhas raízes e substituídas por árvores, arbustos e roseiras de diversas cores. E luz, muita luz. Proporcionada por lâmpadas de boa potência e abertura de janelas de grande dimensão. As ideias fluíam, assim houvesse capital financeiro para as concretizar.
Um som… raios… estará alguém em casa? Pensei eu. Endireitei-me e tentei ouvir de novo. Efectivamente algo se ouvia. Risos talvez. Levantei-me e fui até à lareira. Peguei no ferro de mexer o fogo e em bicos de pés percorri o piso térreo. Afinal parece que o som vem lá de cima. Subi as escadas lentamente, tentando que as tábuas dos degraus não denunciassem a minha posição, com os rangidos que saiam debaixo dos meus pés. Já no cimo, pareceu-me ver uma ténue luz ao fundo do corredor. Tropeço num velho vaso e quase o quebro. Chiiiiuuuu… disse para mim mesmo. Continuei a seguir a luz, que se tornava cada vez mais forte. Parei em frente à porta do quarto principal que estava entreaberta e espreitei lá para dentro.
Dois corpos jovens. Musculados, envoltos numa luz divinal. Seus lábios tocavam-se mutuamente e a cada beijo havia uma nova explosão de luz. Abraçados rolavam por cima da manta de retalhos que cobria a velha cama de dossel. Bem me avisaram os vizinhos que coisas estranhas se passavam aqui. Pensei, imaginando a vizinha gorda da casa do lado esquerdo e do seu finíssimo marido com bigode de pincel. Abri mais a porta e as dobradiças rangeram. Os amantes nem se assustaram, continuando os seus momentos de paixão. Aproximei-me e foi quando um deles me olhou me estendeu a mão. Estivesse eu hipnotizado ou não, só sei que segui naquela direcção.
Três corpos se envolviam naquele leito. Beijos eram partilhados. Toques suaves. E uma sensação de paz invadia todo o meu corpo. Sentia-me flutuar, como se o colchão tivesse simplesmente desaparecido e uma almofada de ar nos sustivesse. Gemidos de prazer foram emitidos por todos. Envolvimentos mais profundos levaram-me a estados de prazer jamais sentidos. Poderia acabar o mundo naquele momento que não me importaria nada. Adormecemos juntinhos, quase nos fundindo num corpo só.
Acordo com um sorriso nos lábios. Cheira a flores. Abro os olhos. Raios de sol atravessam os empoeirados vidros. Deparo-me com o fato de trabalho e com a gravata desapertada, sentado na velha poltrona de tecido gasto. Acho que dormi aqui e tudo o que aconteceu não passou de um belo sonho. E quando olho para o quadro que fica por cima da lareira, lá estavam aqueles belos jovens. Juro que um me piscou o olho mas deve ser apenas fruto da minha enorme imaginação.
Só sei que quero recuperar a velha casa e que esta noite foi apenas o ponto de partida para um grande futuro.
Acabaram de bater as onze badaladas no velho sino da igreja. Meto a chave já enferrujada na fechadura, tacteando, pois a lâmpada de fora há muito que se encontra fundida. As velhas dobradiças rangem e eu entro na penumbra. Acendo o candeeiro que mal ilumina a sala. O anterior proprietário devia ser um forreta, já que todas as lâmpadas ou são de fraca potência ou estão simplesmente mortas de tanto uso. Atiro a pasta ao chão, descalço os sapatos e sento-me pesadamente na poltrona de tecido gasto. Tento vislumbrar o espaço, mas a fraca luz só me deixa adivinhar o que está à minha volta.
Comprei esta casa há apenas 2 semanas. Mudei-me ontem mas esta será a primeira noite no velho casarão. Obras são precisas para que o edifício volte a ter o vigor de outros tempos. Festas e grandes recepções ocorreram neste espaço. Pelo menos assim falavam os vizinhos. Foram tempos de fartura, em que o vinho quase escorria pelo salão. O proprietário anterior, senhor de muitas terras, padrinho de meio mundo, era um mecenas. Mas era também um pobre homem, deixando-se enganar por falsas promessas de aumento da fortuna, que se revelaram verdadeiros fiascos. Terminou a vida quase a pedir esmola pelas ruas. Recebia apoio da Congregação, mas ninguém se atrevia a confirmar o facto. Afinal era ainda o mais alto representante de todas as boas causas sociais. Um exemplo a seguir por todos.
Deixei-me ficar na poltrona. Na minha cabeça, quente dos problemas laborais, ainda se formavam ideias para restabelecer o esplendor ao casario. Pintura nova, canalizações, renovação dos pisos. O velho celeiro seria transformado em salão de festas. No jardim, se se pudesse chamar de jardim efectivamente, seriam removidas as velhas raízes e substituídas por árvores, arbustos e roseiras de diversas cores. E luz, muita luz. Proporcionada por lâmpadas de boa potência e abertura de janelas de grande dimensão. As ideias fluíam, assim houvesse capital financeiro para as concretizar.
Um som… raios… estará alguém em casa? Pensei eu. Endireitei-me e tentei ouvir de novo. Efectivamente algo se ouvia. Risos talvez. Levantei-me e fui até à lareira. Peguei no ferro de mexer o fogo e em bicos de pés percorri o piso térreo. Afinal parece que o som vem lá de cima. Subi as escadas lentamente, tentando que as tábuas dos degraus não denunciassem a minha posição, com os rangidos que saiam debaixo dos meus pés. Já no cimo, pareceu-me ver uma ténue luz ao fundo do corredor. Tropeço num velho vaso e quase o quebro. Chiiiiuuuu… disse para mim mesmo. Continuei a seguir a luz, que se tornava cada vez mais forte. Parei em frente à porta do quarto principal que estava entreaberta e espreitei lá para dentro.
Dois corpos jovens. Musculados, envoltos numa luz divinal. Seus lábios tocavam-se mutuamente e a cada beijo havia uma nova explosão de luz. Abraçados rolavam por cima da manta de retalhos que cobria a velha cama de dossel. Bem me avisaram os vizinhos que coisas estranhas se passavam aqui. Pensei, imaginando a vizinha gorda da casa do lado esquerdo e do seu finíssimo marido com bigode de pincel. Abri mais a porta e as dobradiças rangeram. Os amantes nem se assustaram, continuando os seus momentos de paixão. Aproximei-me e foi quando um deles me olhou me estendeu a mão. Estivesse eu hipnotizado ou não, só sei que segui naquela direcção.
Três corpos se envolviam naquele leito. Beijos eram partilhados. Toques suaves. E uma sensação de paz invadia todo o meu corpo. Sentia-me flutuar, como se o colchão tivesse simplesmente desaparecido e uma almofada de ar nos sustivesse. Gemidos de prazer foram emitidos por todos. Envolvimentos mais profundos levaram-me a estados de prazer jamais sentidos. Poderia acabar o mundo naquele momento que não me importaria nada. Adormecemos juntinhos, quase nos fundindo num corpo só.
Acordo com um sorriso nos lábios. Cheira a flores. Abro os olhos. Raios de sol atravessam os empoeirados vidros. Deparo-me com o fato de trabalho e com a gravata desapertada, sentado na velha poltrona de tecido gasto. Acho que dormi aqui e tudo o que aconteceu não passou de um belo sonho. E quando olho para o quadro que fica por cima da lareira, lá estavam aqueles belos jovens. Juro que um me piscou o olho mas deve ser apenas fruto da minha enorme imaginação.
Só sei que quero recuperar a velha casa e que esta noite foi apenas o ponto de partida para um grande futuro.
quarta-feira, 19 de junho de 2013
Romeu e Julião
Romeu e Julião tinham sido educados para se odiarem. As suas famílias eram inimigas mortais. O clã Capuleto, a que pertencia Romeu, há muito que queriam ter a importância política dos Mercúcio, família de Julião. Já na escola onde estivesse Romeu não podia estar o outro rapaz. Todo esse ódio inexplicável acabava por dividir toda uma escola. Até alguns professores embarcavam na loucura ancestral. Uns por familiaridade, outros por uma espécie de vassalagem.
No interior dos corações dos rapazes havia porém uma incerteza desconcertante. Se por um lado precisavam de cumprir a orientação e tradição familiares, por outro uma força incontrolável que os impulsionava a olharem para o outro lado daquele campo de batalha. A força aumentava a cada dia que passava. Mas o que poderiam fazer dois miúdos de 15 anos?
Estava uma tarde como tantas outras. As crianças brincavam no pátio da escola. Romeu e Julião, que se envolveram numa acesa discussão sobre assuntos de família durante a aula, estavam de castigo. O professor, apesar de não estar alheio a tal luta, posicionou-os na mesma mesa. Lado a lado.
A sala tremeu. Os livros caíram das prateleiras. A velha balança estatelou-se no chão de madeira encerado. Os miúdos só tiveram tempo de meterem debaixo da secretária e logo após sentiram que o mundo desabava.
Toda a escola tinha ruído e aqueles eram os únicos que tinham ficado dentro dela quando o sismo abalou todo o edifício. As famílias desesperavam e velhos ódios acenderam-se obrigando à intervenção policial, separando-os, impedindo que houvesse vítimas de luta, nada a ver com a desgraça que se tinha abatido por toda a vila.
Dois dias passaram até que finalmente os bombeiros conseguiram abrir um corredor, por entre os escombros, até à sala onde Romeu e Julião se encontravam. Debaixo da velha secretária de madeira, os dois rapazes, alheios ao que se passava do lado de fora, uniam-se para sobreviver. E no meio de tanta aflição, Romeu puxou Julião para si, abraçou-o e deu-lhe um beijo.
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