Este blogue tem conteúdo adulto. Quem quiser continuar é risco próprio; quem não quiser ler as parvoíces que aqui estão patentes, só tem uma solução.

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Arroz

Quando me levantei já o polvo estava descongelado. Por surpresa minha afinal eram dois pequenos e não um, como seria de esperar. Coloquei-o a cozer, só com cebola, alho e azeite, como mandam os Poveiros. Juntei umas folhas de louro e um piri-piri seco, como manda a minha consciência. Não gosto de polvo duro mas a desfazer-se também não, prefiro senti-lo na boca dando uso aos dentes.

Um bom Chef desenrasca-se sempre, mesmo quando um dos ingredientes principais do arroz de polvo está quase no fim, o arroz precisamente. Juntei massa esparguete partida aos pedaços pequenos. O arroz e a massa cozem com tempos diferentes mas não importa, quando o arroz já está bem cozido, empapado, e a massa quase no ponto, junto os pedaços de polvo. Deixo aquecer bem, ferver e tapo o tacho apagando o lume logo de seguida. Deixo suar e está pronto a servir.

Vai ser o meu almoço, daqui a alguns minutos.


Fotografia póstuma


quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Agricultura

Assumo aqui publicamente que decidi deixar a minha modéstia de parte e que me comprometi a escrever um dos melhores textos até hoje publicados, neste meu espaço, que no fundo considero também de todos os que por cá passam algum tempo das suas vidas. Corro o risco calculado, de receber um elogio que quem há muito me acompanha e que, por diversas vezes, me tem dito que sou digno de figurar numa das suas prateleiras, no meio de outros nomes, em forma de livro. Capitão JR, desta não me safo.

O que vou escrever será um misto de invenção, talvez mais real do que alguma vez presenciei, com memórias do meu tempo de criança, tempo em que eu julgava ser um rapaz normal e feliz.

Esta tarde de verão (nr: foi escrito na passada quinta-feira), com o céu coberto de nuvens mas com um calor certo, apenas atenuado pela aragem que já se faz sentir, trouxe-me à memória acontecimentos de outros tempos, relacionados com a agricultura, com o trabalho do campo. "Vai acima... vai abaixo... Vai acima... vai abaixo". Seria mais ou menos desta forma que o encarregado do pessoal dava o mote para o movimento das enxadas, que nas mãos calejadas dos cavadores, cumpriam o dever para o qual tinhas sido forjadas. Uma fila quase interminável de homens, lado a lado, já suados, davam uma nova forma à terra, quantas vezes ressequida pelo calor dos dias. Trabalhava-se de "sol a sol" só com paragem para as refeições, normalmente com muita "sustança", gordura, para dar força ou ainda para a necessária hidratação.

Lembro o meu avô materno, cuja morte foi a causa da diminuição da minha felicidade juvenil (só mais tarde retomada pelo nascimento dos meus sobrinhos), na sua fazenda, quantas vezes em conjunto com a minha avó, a cavar a terra, dando o ar às cepas que mais tarde seriam transformadas em vinho, por meio da sua fruta. Também cavava o chão onde semearia as alfaces, o feijão verde, os tomateiros e outras sementes que com a magia da natureza se transformavam em riquezas vegetais necessárias à subsistência.

O meu avô era dono de um motocultivador com reboque, que o auxiliava em algumas tarefas e que foram as suas pernas, o seu modo de deslocação para todo o lado. Longe ia o tempo da carroça puxada por um macho, do qual já não me lembro, sabendo apenas da sua existência através de uma velha fotografia ainda a preto e branco.

Em vinte anos muito mudou na lida do campo. É mais fácil, dizem alguns; dá mais trabalho, dizem outros, talvez aqueles que no fim das contas têm mais razão. Existem hoje mil e um apetrechos a auxiliar o agricultor. Um bom tractor tanto corta erva, como a junta, a carrega, a enfarda, a transporta para o celeiro, tudo com alfaias diferentes. Confesso que às vezes faço uma complexa ginástica mental para tentar perceber para que serve este ou aquele apetrecho.

O velho esmagador de uvas que havia no lagar do meu avô, ainda com funcionamento manual, foi uma das boas memórias que ficaram alojadas no arquivo interno que é o meu cérebro. Hoje a vindima até já se faz com uma máquina, afastando as mãos e tesouras dos cachos de uvas. Arrefece-se o mosto nas adegas para controlo da temperatura e melhoria da qualidade e os homens já não entram nos velhos depósitos de betão para procederem à lavagem necessária, usando agora cubas em inox, o último grito da tecnologia vitivinícola. Com sorte, alguns vinhos fazem estágio em barricas de madeira, para ganharem o gosto daquele natural material.

Trabalha-se de noite nos tempos que correm. Dizem os entendidos que é durante a noite que a pulveriza é mais eficaz, que o trabalho com o tempo mais fresco tem outro rendimento e que as frutas ganham mais qualidade.

Uma ameixieira do meu avô tinha o tamanho de uma casa e aquele tecto de folhas verdes e ameixas grandes amarelas eram a minha perdição. Apetecia subir pelo tronco e ficar a passear pelos grossos ramos, colhendo as melhores peças de fruta, aquelas que cresciam bem lá no alto, doces mas com aquele sabor um pouco amargo da casca, que resultava numa mistura agradável. Antes de eu saber que era nas Beiras que a cereja era rainha e senhora, já eu brincava com aqueles brincos, embora não fosse na altura um grande apreciador de tão bom fruto. E junto ao poço, uma parreira dava sombra e cachos de uvas doces, que chupava e ficava a apreciar todos os sabores.

O trabalho era duro e quantas vezes o resultado não era o esperado. Não haviam seguros e a conservação limitava-se às conservas e não estava disponível para todos os produtos. Consumia-se assim o que era da época e quando o tempo pregava partidas, a fome poderia ser convidada indesejada.

No pequeno quintal junto à casa, a par da garagem das alfaias agrícolas, da pocilga onde se criava o porco e até a rústica casa-de-banho (a vulgar cagadeira), laranjeiras faziam sombra às coelheiras e ao galinheiro, havendo ainda espaço para uma pequena horta, onde não faltavam alfaces, couves e tomate, pimentos e pepinos, ervas aromáticas. O poço comum a duas famílias e as casotas dos cães albergavam-se no telheiro, onde junto à telha vã, caixas de madeira serviam de ninhos aos pombos que ainda borrachos seriam ingrediente principal da canja, assados no forno ou tão bem arranjados na frigideira pelas maravilhosas mãos da minha avó.

Fazia-me um pouco de confusão o facto da minha casa não ter forno, mas podia contar com o pão que um familiar preparava à sexta-feira à noite e cuja massa deitada no forno no dia seguinte. O forno era na altura o mais importante "electrodoméstico" da casa. Não conheci padeira como a minha avó materna e a sua técnica de amassar só com uma mão, não seria a única razão para que o pão ficasse sempre bem, delicioso, ao ponto de comermos "pão e dentes", quentinho, sem precisar de qualquer outro ingrediente adicional, como manteiga, azeite ou açúcar. Aquela técnica de preparação da massa era a verdadeira prova da força da minha avó. Pudera a muitos homens, força idêntica não faltar.

Na eira malhavam-se os cereais, o feijão e as favas já secas, as ervilhas e os tremoços, estes depois cozidos e comidos pelos santos. Descamisava-se o milho, havendo a tradição do "milho rei", tendo quem o encontrasse a oportunidade de dar um beijo a todos os elementos solteiros, os do sexo contrário, criando-se afectos e muitas vezes laços para a vida.

Na época do trigo, a velha debulhadora funcionava dia e noite, movida pelo velho tractor, que pela sua idade deixava adivinhar quando deixaria de funcionar. Separava o trigo do joio e enfardava a palha, que viria a ser cama e comida de inverno para os animais. A debulhadora é uma máquina magnífica que ainda hoje me fascina, mesmo já sendo rara no campo, tão raro como o trigo já se torna por estas bandas. Os adultos afastavam-me daquela mistura de pó, palha, barulho e da confusão atarefada de quem alimentava aquele equipamento desengonçado, madeira que chiava constantemente, pedindo lubrificação.

O domingo era dia santo e pela manhã, o meu avô, tal como tantos outros, sentava-se à mesa e com um pincel e sabão, cobria a cara de espuma e cortava a barba, sob o meu olhar atento e o do bichano que junto a mim se mantinha. Depois uma viagem até à freguesia vizinha, a poucos quilómetros, cujo transporte era o habitual motocultivador. Andava devagar mas sabia bem aquela brisa na cara, que sentia ao ficar sempre levantado agarrado ao cavalete, a conversar com o condutor. Naquele centro urbano adquiriam-se alguns mantimentos e os produtos químicos necessários à lavoura. Colocava-se a conversa em dia: as mulheres junto à mercearia ou à porta da igreja, depois do serviço dominical; os homens na barbearia ou na taberna.

Recordo agora com a nostalgia normal esses pequenos momentos do meu tempo de criança, aumentados agora pela saudade de quem já partiu. Momentos que ficaram lá atrás e que já não serão revividos. Muito mais havia a contar, mas a noite já chegou e a luz pública já não chega para iluminar o que os meus olhos precisam de ver.


PS: Se houver algum erro estão à vontade para denunciar. Com a ânsia de publicar até esqueci de fazer a correcção necessária.

PS2: Já corrigi... penso eu de que...






Coisas que odeio

Queimar os dedos enquanto cozinho.

          Queimar a língua com comida muito quente.

                    Trincar um lábio enquanto mastigo.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

leitura

Confesso que gostaria de saber mais sobre a década de sessenta e dos anos loucos do início da década seguinte, em relação à história deste nosso pequeno rectângulo à beira do mar plantado. Nasci quatro anos depois de um dos mais marcantes momentos da história recente, o dia em que os portugueses se viram livres do jugo de quem os tentara silenciar turante mais de quarenta anos. Podia ter nascido mais cedo pois era essa a vontade da minha mãe, contrariada pelos pensamentos um pouco rudimentares do meu pai. Não me deu tempo para o conhecer nem sequer para lhe poder fazer as perguntas que muitas vezes ficam em mim à espera da resposta que nunca virá.

Esta crónica que estou a escrever vem, ao contrário do meu nascimento, antes de tempo. Estava reservada para outro dia, mas por vezes as ideias avolumam-se dentro da minha cabeça na ânsia de quererem saltar cá para fora. Como não quero dores de cabeça desnecessárias, fiz-lhes a vontade e antes mesmo de me sentar à mesa para finalmente jantar, aqui estou a lançar na blogosfera mais alguns dos meus disparates... e outras coisas mais importantes.

As décadas que referi no início do texto foram as mais sangrentas da nossa história recente. A guerra assolou as colónias ultramarinas, terras que não eram de gente branca mas que foram sendo protegidas, como se fossem património próprio. E eram, pelo menos no pensar da altura ou principalmente antes de pais terem visto partir os seus filhos para protegerem o que não conheciam, mas que até então consideravam seu. A guerra é mesmo assim, tolda a vista fazendo ver coisas que até então não estavam ao alcance de todos.

Este palavreado todo vem de encontro com o real motivo pelo qual aqui estou, a leitura de um livro escrito por um amigo, que com a sua mestria literária relata as suas memórias daquelas paragens que um dia teve que proteger, mesmo não sendo desejo seu, antes pelo contrário. Um beirão, que em 1971 parte para terras distantes, ao desconhecido, em direcção aos horrores que na verdade eram escondidos para os habitantes da metrópole. Afinal esconder era a maior façanha de outros tempos.

Não sabia o que esperar de um livro de memórias sobre a guerra, principalmente por conhecer pessoalmente o autor, embora eu seja apenas um miudo e ele um amigo recente. Se por um lado esperava ler sobre os horrores, por outro esperava uma versão mais soft sobre o assunto. Encontrei uma bela história real, que me apaixona a cada página, a cada palavra cheia de significado e de autor.

Não cheguei ao fim do livro ainda, o que acontecerá possivelmente ainda esta noite, mas espero apenas encontrar mais do que até agora encontrei. De ressaltar o facto do livro conter algumas informações adicionais que são muito importantes para melhor se perceber o que se passou naquela altura em particular.

Recordo conversas que tenho mantido ao longo do tempo por diversos homens que, tal como o meu amigo, lutaram por um sonho que não era seu. Há quem esconda o que lá viveu. Há quem conte de forma romanceada o que de romance nada teve. E existem aqueles que não conseguem esconder ainda hoje todo aquele mal que por lá viveram. Podia contar aqui uma ou duas histórias de quem viveu em primeira pessoa esses horrores, mas não cabe a mim fazê-lo. Possivelmente não passarão de memórias orais, que cairão no esquecimento, a bem das gerações futuras.

A Ilha de Metarica, um livro de João Carlos Roque.