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segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Culinária e outras estórias

Ingredientes:

5 dentes de alho
1 cebola média
meia beringela
dois tomates médios
cenouras a gosto
azeite
1 caldo de carne
água

Preparação:

Picam-se todos os ingredientes colocam-se num tacho e vai a cozer. Depois de cozido, triturar e juntar um pouco mais de água, para o creme não ficar tão grosso. Juntar feijão cozido e arroz ou massa. Deixar apurar, corrigir os temperos e não esquecer o picante, para quem apreciar. Serve-se a sopa quentinha e guarda-se a restante no frigorífico, após arrefecer.


Estava a preparar a sopa quando me lembrei do velho Pedro, Mestre Pedro como o povo lhe chamava, por ser um dos melhores marceneiros das redondezas. Do Mestre Pedro já ninguém sabia a idade, todos se tinham habituado à velha oficina de onde saiam belas peças de mobília ou outros arranjos, que o velho homem sempre desenrascava quem precisava. Nas tardes de primavera e verão a loja estava quase sempre cheia, não de clientes, mas de crianças que o ouviam a contar histórias. Não havia melhor contador de histórias, contadas vezes sem conta, há já várias gerações. Os pais das crianças tinham ouvido as mesmas histórias quando elas próprias eram petizes.

Mestre Pedro contava cada uma como se se tivesse passado no dia anterior. Gesticulava freneticamente, enquanto usava habilmente as suas ferramentas e construía as peças que seriam o seu único sustento. As histórias de África eram as mais apreciadas, mas as da sua passagem pelo circo ou as suas aventuras em terras de Sua Majestade, também caiam muito bem no goto da criançada. Contava-as como suas, embora os mais adultos, com o passar doa anos, acreditavam que eram apenas histórias, criadas por um cérebro fértil.

«Mestre Pedro... da última vez não foram só 3 leões?» - questionava um petiz mais perspicaz. Mas o velho Pedro não se engasgava e logo dizia, «Claro que disse. Mas da última vez vocês eram ainda muito novos para saberem toda a verdade. Se eu vos dissesse que tinham na realidade sido 6 leões, vocês desatavam a fugir daqui com medo.». A risada era geral.

À noite Mestre Pedro recordava as suas histórias, aquelas que tantos pensavam ser meras fantasias de um velho tonto. Mas não eram e as mais fantásticas e maravilhosas não se atrevia a contá-las ao povo. Pedro recordava aquele tempo em que, com apenas 14 anos de idade, tinha passado na selva africana. Umas férias inesquecíveis, passadas em conjunto com outros jovens da mesma idade e outros um pouco mais velhos. Todos filhos de homens ligados às minas, que gozavam de umas férias normalmente longe da civilização, mais perto das tribos nativas, as amigáveis apenas.

Na mesma tenda do jovem Pedro estava também John, filho de um dos administradores ingleses. John, um pouco mais velho, tinha cabelos loiros e olhos azul-esverdeados. Alto, másculo, simpático, amigo da brincadeira. Tratava Pedro como se de um irmão se tratasse e Pedro via no inglês a perfeição em pessoa. Era costume no acampamento os mais velhos tomarem conta dos mais novos, mas John, ao contrário dos outros, quando se juntava com os da mesma idade, tinha por costume levar com ele o camarada de tenda e Pedro sentia-se importante. Era apenas um puto entre os mais velhos, mas era respeitado pois John impunha esse respeito.

Certa noite o acampamento foi rota de visitantes inesperados e nada bem vindos. Um grupo de leões, talvez mais curiosos do que ferozes, invadiram algumas tendas, pondo os seus moradores a fugir. Pedro, que normalmente dormia como uma pedra, de tão cansado que ficava com as actividades diurnas, nem dera pelo perigo. Quando abriu os olhos deparou-se com uma fera a olhar para ele, olhos nos olhos praticamente. Pedro nem se atreveu a lançar qualquer ruído, na esperança que o nobre visitante desse meia volta e fosse embora, que não o achasse um pitéu.

John percebera que ao se ter afastado da tenta poderia ter deixado inadvertidamente para trás o seu companheiro. Sem pensar sequer na sua própria vida, lançou-se em direcção ao acampamento, agarrou um galho, entrou na tenda e fez frente ao leão. Um rugido entoou e a fera simplesmente saiu, não se sentindo minimamente ameaçada pelo jovem inglês. Pedro levantou-se e abraçou John, o seu salvador. O perigo passou e todos voltaram ao acampamento. Na restante noite, Pedro dormiu seguro nos braços de John. E nas seguintes também, não fosse o leão voltar.

O velho Pedro acabava sempre com lágrimas nos olhos. Depois desse verão não voltou a ver John. Soube apenas que voltou à Escócia e não mais soube dele. Os anos passaram e a imagem do inglês jamais lhe saiu do pensamento. Pedro cresceu, alimentado com uma ínfima esperança de voltar a ver o outro rapaz.

Era Natal. A noite estava fria e Mestre Pedro mantinha-se no velho cadeirão, enrolado na manta de retalhos de que tanto gostava, junto ao lume. Dormitava já há algum tempo quando sentiu uma presença junto a si. Abriu os olhos e uma luz muito branca estava à sua frente, luz que se desvaneceu e fez aparecer uma bela cara, um anjo.


Estendeu a mão em direcção de Pedro e sorriu. Pedro, tão corajoso quanto a sua avançada idade o permitia, estendeu a mão, levantou-se e sentiu que o chão lhe faltara por baixo dos pés. Fechou os olhos e quando os tornou a abrir reconheceu o pano da velha tenda daquele acampamento que nunca esquecera. Tinha de novo 14 anos e estava deitado, seguro nos braços de John.

No outro dia de manhã, o velho Pedro foi encontrado sem vida, junto à lareira com cinzas ainda fumegantes. Um sorriso ficou-lhe estampado nos lábios e a sala cheirava a flores.



Eis mais uma estória, escrita enquanto os ingredientes da minha sopa de legumes cozem. Está na hora de voltar à cozinha e abraçar as tarefas culinárias em falta, pois do velho Pedro, já só restam memórias.

8 comentários:

João Roque disse...

Tens-nos andado a iludir, não tens?
Isto é muito bom!!!

Ribatejano disse...

João

Com toda a honestidade acho que este é um dos meus melhores textos, não vou ser modesto desta vez.

Acho que é a melhor forma de agradecer o texto com que fui agraciado pela Margarida. Só um bom texto para agradecer um excelente.

Abraço

Francisco disse...

Adorei,

Parabéns, creio que tens todas as hipóteses de ser o vencedor no próximo pixel :D

Abraço

Ribatejano disse...

Francisco

Participarei no próximo Pixel, não sei é se terei hipótese contra os demais. loool

m. disse...

atónita!
muito, muito bom. um dia, hei-de escrever assim :)

miguel disse...

eu ia dizer que só a sopa está a mais nesta história tão límpida e 'straightforward' quanto subtil e instigante.
mas depois lembrei-me que é precisamente a sopa que nos pega pela mão (ou pela boca) e nos leva direitinhos ao coração da história, sem nos dar tempo a ligar o botão da 'suspensão da incredulidade': "Estava a preparar a sopa quando me lembrei do velho Pedro..."
muito bem

Ribatejano disse...

Margarida

Essa modéstia não fica bem em ti.

:)

Ribatejano disse...

miguel

É uma novidade na minha escrita: se contasse aó a história parecia ser muito fantasiosa; se fizesse só uma publicação culinária não teria despertado interesse.

É a simbiose entre os dois temas que torna o texto delicioso.

lol... olhem para mim a fazer auto-critica literária.